quinta-feira, 24 de junho de 2010

Estado de São Paulo.

Christiane Torloni em pele e garra de Loba.




Agora ela é a protagonista da peça de Renato Borghi em sua versão feminina.

Impossível não experimentar uma sensação de fascínio diante da bela cenografia que se avista na penumbra da imensa boca de cena do grande palco do Teatro Frei Caneca. Numa das cadeiras da plateia quase inteiramente vazia, o diretor José Possi Neto, microfone à mão, testa com sua equipe um efeito cênico que envolve a um só tempo luz, espelhos e música. Lá no fundo do palco repousa uma vara de luz - o comprido bastão de madeira que sustenta vários refletores. "Ao primeiro blão do piano começam a subir a luz e descer os espelhos", diz ele. "Mais devagar com a luz, mais intensidade, aí, subiu demais, volta, o ponto é esse." Enquanto sobe a vara, os refletores se acendem criando focos em forma de cones enquanto, bem mais à frente do palco, três espelhos gigantescos descem, tudo ao som do piano. O efeito é mesmo muito bonito.

Possi é um esteta do palco. Mas a julgar pelo ensaio acompanhado pela reportagem do Estado, o público pode esperar bem mais do que beleza visual nesse espetáculo que faz ensaio aberto hoje, estreia para convidados amanhã e para o público no sábado, a versão feminina de O Lobo de Ray-Ban, texto de Renato Borghi cuja versão masculina, também dirigida por Possi em 1987, com Raul Cortez como protagonista, fez uma daquelas carreiras de enorme sucesso, dois anos de temporada viajando por todo Brasil e até para o exterior. Mais do que apuro visual, o texto pede bons intérpretes e encontrou na atriz Christiane Torloni, verdadeiramente, a loba do título.

Sentimentos como paixão e rejeição, quando atingem extremos, não são nada fáceis de serem interpretados. Uma cena, como há nessa peça, em que uma mulher se lança literalmente aos pés de outra pessoa e implora para não ser abandonada, pede uma qualidade de interpretação muito especial. Se a atriz não se lança plena, se fica a meio do caminho, nada acontece. Se decide "exibir" a dor, cai no ridículo, que se separa do patético, no sentido do "pathos" dramático, por uma linha tênue. É cena que pede despudor e senso de medida, visceralidade e domínio técnico, tudo ao mesmo tempo. E, pelo que se viu no ensaio,
Christiane vive um momento de atriz capaz de alcançar tal diapasão. E tem nos atores Leonardo Franco e Maria Maya parceiros de cena à altura do protagonismo que a peça exige dela.

Efeitos de cena, jogos e truques teatrais não são gratuitos nesse espetáculo cuja trama, muito bem urdida, de Renato Borghi, presta homenagem ao teatro, mais especificamente a uma certa tradição cênica, predominante nos últimos dois séculos, cujo espaço por excelência é o edifício teatral, abrigo do palco italiano, a caixa cênica com maquinaria inspirada na construção naval, com seus cordames e panos (velames), urdimentos e alçapões. Sobre seu tablado de madeira gerações de atores deram vida a textos estruturados em atos, personagens, relações de causa e efeito. E encantaram plateias ao longo dos tempos. Eles, seus amores e seu ofício são tema dessa peça.
"Quando fizemos a primeira montagem, tínhamos medo de que só tivesse interesse para a classe teatral", lembra Possi. Por motivos óbvios, essa preocupação não existe mais. A versão feminina de O Lobo de Ray-Ban tem como protagonista Julia Ferraz, primeira atriz e empresária, dona da companhia, que um dia se apaixonara pelo jovem ator Paulo ao vê-lo numa cena de Marat/Sade. Juntos, eles viveram um casamento amoroso e artístico de 12 anos. Quando a peça tem início, a separação afetiva entre eles ocorrera há um ano, mas a parceria na arte se mantivera. No entanto, a noite flagrada - em que se representa não por acaso Medeia, a tragédia de Eurípedes na qual a protagonista mata seus filhos para vingar-se do abandono de Jasão - será a última apresentação dele na companhia. Paulo rompeu seu contrato e vai atuar na televisão.

Bissexual, Julia já está apaixonada pela jovem atriz Fernanda, que há um ano se integrara à empresa. Não por coincidência, mas por escolha nada aleatória de Renato Borghi, a jovem atriz foi aprovada num teste para a peça As Criadas, de Jean Genet, que enfoca uma relação de amor e ódio das três mulheres do título, com a rica, bela e poderosa madame. Mas também ela, a jovem atriz, avisa naquela mesma noite que deixará a companhia. A dor pesa e Julia Ferraz, em plena representação, começa a chamar Jasão de Paulo, mistura tudo, até interromper a cena. "São várias quartas paredes", diz Possi, referindo-se àquela separação invisível que faz do espectador um voyeur. Isso porque, quando a cena é interrompida para o suposto público de Medeia, ela não só continua, como se intensifica, para quem foi ver A Loba. "Separação, adultério, rejeição, paixão, desejo de vingança. Quem não viveu alguma dessas experiências!", diz Torloni. "E a peça aborda sentimentos sem meias palavras, sem poupar ninguém, elenco ou público."

Imagina-se que a bissexualidade fosse um tema de trato mais delicado há 22 anos. "De jeito nenhum. Estávamos mais próximos dos anos 70, da geração que fez a revolução do prazer, antes que a filosofia yuppie, da década de 80, se sedimentasse. E veio a aids, que provocou um retrocesso na liberdade sexual. Há, claro, permissão para os jovens dormirem com suas namoradas na casa dos pais, mas os tabus continuam aí, e as pessoas estão muito mais defendidas no amor. E esse texto trabalha com os impulsos arquetípicos da paixão", afirma Possi. "E Borghi faz isso por meio de personagens mitológicos, como Medeia, e assim informa muito rápido ao público o que está em jogo", diz Torloni.

Por que a versão feminina demorou tanto a subir ao palco? "Nem Borghi tinha mais uma cópia", diz Leonardo Franco, o responsável pela "redescoberta" da peça, que depois de muito procurar achou o texto na Biblioteca Nacional. "Atuar na montagem anterior foi um marco em minha vida. E ainda quero, daqui a dez anos, voltar a esse texto, no papel do protagonista", afirma esse ator, fundador do Solar de Botafogo, um espaço teatro que já se firmou no cenário carioca. Coincidentemente, ali fez sucesso Play, montagem inspirada no filme Sexo, Mentiras e Videotape, que deve chegar a São Paulo em janeiro, e da qual Maria Maya é uma das produtoras e também atua. Gente de teatro é alma e carne em A Loba de Ray-Ban.



Preste Atenção...


... na homenagem ao teatro presente antes ainda que a cortina se abra. Ao entrar no teatro, o espectador vai ouvir uma gravação com aquele burburinho característico das plateias antes do início da sessão: conversas de muitas vozes embaralhadas, tosses. Vez por outra, uma frase sobressai. "Todas são de gente de teatro", diz Possi. "Tem Cacilda Becker e Walmor Chagas, Nelson Rodrigues, Raul Cortez..." Paulo Autran e Bibi Ferreira foram as duas vozes reconhecidas pela reportagem do Estado no curto trecho ouvido.

...na forma "diferente" como Christiane Torloni traz para o palco as batidas de Molière, como ficou conhecido o "sinal" para o início da sessão - sete batidas com um cajado sobre o palco -, usado pelo dramaturgo e ator francês antes que a luz elétrica tornasse comum os três toques de campainha.

...na dramaturgia muito bem urdida de Renato Borghi, autor de A Loba de Ray-Ban, a homenagem ao teatro se dá de várias formas. Uma delas é a inserção de nomes de peças, naturalmente, no meio de um diálogo. Fique atento para detectar títulos como Doce Pássaro da Juventude (Tennessee Williams), Essa Noite de Improvisa (Luigi Pirandello. Há outras. É gostosa brincadeira identificá-las.

Aproveite para conhecer melhor o tradicional palco italiano, com a chamada caixa cênica que é parte da cenografia. Termos como camarins e coxias (lateral onde os atores esperam para entrar) estão presentes. Quando
Christiane diz que vai subir para a varanda, ela se refere a uma espécie de andaime de metal que permite aos técnicos manipular os cordames e refletores. Possi "falseia" uma varanda no palco. A verdadeira fica lá no alto.

Há 22 anos


VERSÃO MASCULINA

PROTAGONISTA: Raul Cortez interpreta o dono da companhia, que se vê abandonado pela ex-mulher, a atriz e companheira de 12 anos, e pelo jovem ator por quem está apaixonado.

SEGUNDO PAPEL: Christiane Torloni vive a companheira e parceira artística do grande ator, a quem deixa para atuar na TV.

QUEM CHEGA: Leonardo Franco entrou no elenco já com o espetáculo em temporada para viver o jovem iniciante que se torna amante do grande ator.

PEÇAS DENTRO DA PEÇA: Ricardo III, o personagem histórico corcunda e cruel da criação de Shakespeare, é o papel vivido pelo grande ator em cena. Não por acaso. Evidentemente, o autor fez tal escolha porque o papel traduz tanto o "poder" exercido pelo dono da companhia como a sua sensação de rejeição, faces de uma mesma moeda. Eduardo II era a peça utilizada no "teste" feito pelo jovem ator iniciante.


Fonte : Estado de São Paulo

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